No segundo semestre de 2014, a Faculdade de Medicina da USP formou
uma comissão de sindicância para investigar atos de violência física e
emocional cometidos contra calouros nos tão tradicionais quanto desumanos
trotes do início do ano letivo. O relatório final da comissão computou oito
acusações de estupro desde 2011. Os oito ataques sexuais, todos promovidos em
festas da faculdade, tinham um importante ponto em comum: a universidade fingiu
que eles não aconteceram e nenhum procedimento sério de apuração foi em frente.
Este fato está relatado no epílogo do ótimo livro “A Clínica –
A farsa e os crimes de Roger Abdelmassih”, escrito pelo jornalista Vicente
Vilardaga e publicado pela editora Record. Terminei de ler o livro na
quinta-feira, com aquela boa sensação de que o jornalismo não morreu. Está bem
vivo e migrando das páginas dos jornais e das revistas para as dos livros. O
relato de Vilardaga é uma reportagem bastante apurada e muito bem escrita sobre
a vida do “médico monstro”, que estuprou dezenas de pacientes em sua clínica
enquanto elas estavam dopadas ou fragilizadas pela ansiedade de se tornarem
mães.
Acabei a leitura, fechei o livro e, por força de um mau hábito,
peguei o celular e entrei no Facebook. Minha linha do tempo estava tomada de
protestos por conta do estupro coletivo de uma menina de 16 anos no Rio de
Janeiro. A imprensa noticiava que homens fizeram circular na rede um vídeo em
que mais de 30 marmanjos seviciavam uma garota.
A notícia, infelizmente, não me espantou. Eu havia acabado de sair
de um relato que, apesar de não ter essa pretensão explícita, descortina que
vivemos, sim, uma cultura de tolerância com o estupro. Abdelmassih só cometeu
tantos crimes e com impressionante frequência graças à cumplicidade social em
relação à violência sexual.
Isso fica bastante claro na excelente reportagem de Vilardaga.
Abdelmassih sempre pôde contar com a omissão de funcionários, de colegas, do
Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e, em alguns casos, até
dos maridos de suas pacientes. Basta ler o episódio, relatado no livro, em que
uma das vítimas sai da sala de Abdelmassih gritando após ter sido atacada por
ele. O marido da vítima, que investiu R$ 30 mil no tratamento que poderia lhe
trazer um filho e não queria perder dinheiro, pergunta para a mulher se ela
tinha certeza do que ocorreu. Se ela não havia entendido errado o ato do médico.
Para entender a essência da “cultura do estupro”, expressão que tomou
de assalto as redes sociais nos últimos dias, é fundamental ler a história de
Roger Abdelmassih. O arcabouço de proteção erguido em torno do médico, a falta
de fiscalização e de ação do Cremesp ao engavetar todas as acusações conta ele
e o xadrez da investigação para conseguir provas do cometimento de crimes que,
em regra, se resumem à palavra da vítima contra a do acusado, expõem a cruel
vulnerabilidade imposta às vítimas e o quanto são precárias as respostas que a
sociedade oferece ao problema.
Desde as primeiras queixas feitas ao Cremesp ainda no início da
década de 1990 até ser condenado pela juíza Kenarik Boujikian Felippe a 278
anos de prisão por 48 crimes de variados graus, em novembro de 2010, o médico
contou com a conivência de um leque de pessoas e instituições só explicável
pela cultura do silêncio em relação aos delitos sexuais, por uma espécie de
dúvida permanente que paira sobre a palavra das vítimas.
Além dos estupros, o médico manipulou ilegalmente material
genético e enganou seus pacientes sem qualquer remorso: “turbinou” óvulos de
mulheres com DNA de outras mulheres, fecundou óvulos com espermatozoides que
não pertenciam ao marido das pacientes – em alguns casos, usou seu próprio
esperma. Descoberto por uma de suas clientes, deu a ela, sem dizer para que
serviam, dois comprimidos abortivos para que a gestação fosse interrompida e
ela não pudesse provar a grave fraude. Não fossem alguns poucos e teimosos
jornalistas, promotores e vítimas, seus crimes não teriam sido revelados.
Em 1970, pouco mais de um ano depois de se formar, Abdelmassih
colocou uma paciente em um verdadeiro cárcere privado no Hospital Irmãos
Penteado, em Campinas. Sem que pudesse se locomover e sem acompanhantes no
quarto, à exceção de uma mulher cega, a paciente virou uma espécie de escrava
sexual. Enfermeiras e outras pessoas do hospital notaram algo estranho, mas
nada fizeram. Na mesma época, os médicos comentavam que ele havia atacado uma
enfermeira. O caso repercutiu e ele se afastou discretamente do hospital, sem que
seus atos tivessem maiores consequências. Alguém dúvida que a omissão inicial
foi determinante para os crimes futuros?
No caso do estupro coletivo do Rio de Janeiro – e neste sábado já
circulam notícias sobre outro ataque idêntico no Piauí – houve quem tentasse
atribuir a culpa pelo crime à pobreza dos atores envolvidos, aos bailes funk, à
ausência do Estado no local e até à falta de informação. A ausência de Estado
pode favorecer crimes. Isso é fato. Mas não podemos dizer que os estudantes da
Faculdade de Medicina da USP que estupraram suas colegas e contaram com a
omissão da universidade sejam exatamente pobres ou que há falta de Estado na
faculdade. Podemos?
Podemos procurar quaisquer justificativas para o ato. Mas a mais
palpável e próxima da realidade é que os mais de 30 sujeitos que estupraram a
garota fizeram aquilo simplesmente porque achavam que podiam. Acreditavam que o
ato não é lá tão grave. Tanto que filmaram o crime e divulgaram o vídeo da
barbárie pelas redes sociais. “Amassaram a mina, intendeu ou não intendeu?
kkk”, escreveu um deles ao compartilhar o vídeo do estupro. “Estado do
Rio inaugura novo túnel para a passagem do trem bala do marreta”, dizia a
legenda de uma foto do mesmo estupro postada por outro indivíduo.
Talvez pouca coisa explique melhor o ato e sua exposição quase
natural do que a noção de banalidade do mal conforme a formulou Hannah Arendt
na década de 1960. A filósofa foi incompreendida e muito criticada quando a
sugeriu que Adolf Eichmann não passava de um burocrata alemão cumpridor das
suas obrigações, na visão do próprio nazista. O fato de ele ter embarcado, em
trens, milhares de judeus cujo destino era a morte e a tortura nos campos de
concentração não lhe tirava o sono.
Afinal, ele cumpria as regras vigentes e plenamente aceitas pela
sociedade da qual fazia parte. Para os nazistas, não havia nada de mais no ato
de mandar judeus para a morte. Na série de artigos publicados na
revista The New Yorker em 1963, que se transformaram no livro
“Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, Hannah Arendt
mostra que o nazista não revelava ódio ou asco em relação ao povo judeu. Ele
apenas atuou de acordo com o que acreditava ser seu dever funcional, sem
questionar ordens e normas ou refletir sobre o mal que seus atos poderiam
causar.
E o que o exemplo superlativo do nazismo cultivado entre o
espírito da banalidade e o sentimento de conivência tem a ver com o estupro
coletivo, com as agressões sexuais nos trotes da USP ou com Roger Abdelmassih?
Os jovens universitários que estupraram as calouras, o médico rico que estuprou
as pacientes e os mais de 30 homens da comunidade pobre que estupraram a garota
fizeram isso simplesmente por acreditar que podiam. Porque a mulher é vítima
histórica de um processo de desumanização provocado pela misoginia que dá as
cartas na nossa sociedade, que é plural e aberta apenas na teoria.
Estupradores talvez acreditem que possam estuprar porque não veem
o ato com repulsa. O que causa isso é a existência dessa rede de proteção
social que evita jogar luz sobre esses crimes e prefere varrer para debaixo do
tapete os casos de agressão sexual. Logo, se não há reação da sociedade, o ato
não merece repreensão. É uma cultura eficazmente desenhada em detrimento da
humanidade da mulher.
Roger Abdelmassih é um símbolo maior dessa cultura de cumplicidade
e omissão que envolve os crimes sexuais. Seu enredo explica à perfeição a
naturalidade com que homens gravam o próprio crime e distribuem o vídeo por
meio de redes sociais.
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